quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Nostalgia

Folha em branco,
Caneta de tinta seca
Pena de ponta partida,
Linhas tortas em campo

Banco sem poeta
Janela sem observador
Baloiço sem criança
Divã sem sonhador

Folhas caídas
No pátio esquecidas.

Camada de pó
Recordação empilhada
Lembrança arrastada
Instrumento sem dó

Sol poente
Aquele, quente
Este, frio
Perdeu o brio

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Perseguição

Pesadelos que assumem formas
Morte anunciada ao destemido,
Pedaço de céu que foi comido
É o risco por aquilo que amas.


»Perseguição desenfreada, à frente as rasgadas e escarpes montanhas cortam o ar como armas de uma teia. Perante reflexos do passado e os sonhos que comportam, o sentido do ser perde-se.
»A perseguição perde rumo enquanto adentra o novo pesadelo.

»Cuidado para não tocar, raspar, arranhar... Agora desviar. Não para esse lado, para o outro. Para cima, não, baixo, lado, aí não, ali, naquele lado, desvia! A montanha vai-se materializando de momentos em momentos cuidando arrancar o coração.

»A presa desaparece de vista, as imagens tomam o seu lugar.
»Quem disse que se estava numa montanha? Disparate. O prado percorre os montes e vales, o verde deslizando sobre ele como um manto de vida. As árvores abanam ao sabor da suave brisa como que saudando o visitante.
»Verde? Não. A cor predominante é aquele castanho venenoso de quem foi tomado pela morte. As árvores não passam de espinhos decrépitos saídos algures da terra. Nem abanam com o sabor da brisa, não há brisa. A morte até o vento levou.

»O relógio anda para trás, dobra-se no tempo. Imagens distorcidas. A realidade altera-se.
»Os sonhos não mais são sonhos, não mais existem. Este é um mundo de pesadelo constante. Os mais horríveis tormentos conhecidos, aqui, são o rouxinol a cantar à alvorada.
»Não se sabe quanto tempo passou, minutos, horas, dias, anos. A morte não matou, ela comeu o ser chupando todas as entranhas.

»Fora

»As montanhas rodeiam novamente, ar! Ás golfadas ele entra, mas já não parece o mesmo ar, nada parece o mesmo. O tempo está parado, nada mexe. O perseguido há muito desapareceu, só os rasgos de pesadelos perduram à volta.
»Outra vez! Os ponteiros mexem-se outra vez, a velocidade retorna na sua igualdade. Já não há o que a suporte. A fraqueza domina, o controlo não existe. Já não há desviar: choca, esbarra, esfola, parte-se, esmaga-se. Sangue fresco é a nova decoração destes espinhos.

»O perseguidor já não existe, cai simplesmente, empalado no pesadelo. O pesadelo decidiu fazer dele sua parte.
»Perseguição vã, o amor escapou-se pelo horror, ou foi consumido pelo mesmo.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Sons do Fundo da Cave

Aquele velho ruído não era nada, nada de anormal.
Mas era o ruído, e velho.

Vi quem se arrepiasse, ficasse com os cabelos em pé, ou pele de galinha.
Vi quem olhasse inquisidoramente à sua volta à procura do autor de um possível ataque.
Vi quem tivesse o olhar esgazeado por todo o aposento à procura do autor de semelhante som.
Nunca senti nada disto, pelo contrário, uma onda de alívio percorria-me. Sentia que a minha presença era acolhida nalgum lar.

Sempre soube que o ruído vinha da cave. Aquilo que ninguém percebia de onde vinha, para mim era claro a sua origem.
Não sei dizer se o ruído era um arfar, uma serra a arrastar-se numa parede, um som de agonia, um impulso de raiva, um pingo a cair ou tudo isto e mais alguma coisa.
Nunca ninguém soube dizer. Na verdade, nunca ninguém conseguiu falar no assunto. Talvez fosse demasiado aterrorizante ou pensassem que estavam a enlouquecer.
Também nunca ninguém sobreviveu muito tempo para contar história de semelhante som.

Nunca investiguei a fonte do som, sabia apenas o local. Penso que se o desconhecido é desconhecido, é porque o objectivo não é ser conhecido. Nunca procurei meter-me onde não me chamaram. Se querem que eu saiba algo, que se apresentem à minha frente.
Mas talvez o devesse ter feito.
De qualquer forma, é passado. E não vale a pena lamentar o passado quando nada o vai alterar.

A cave era um aposento ao qual se acedia através de um alçapão encontrado debaixo do tapete de entrada, descia-se por umas escadas e deparávamos-nos com uma porta, era uma porta antiga, de uma madeira sólida que com os anos não tinha deteriorizado.
Estava trancada e era firme. Apesar de isto ser o suficiente para não deixar ninguém entrar, esta, ainda se encontrava com diversas tábuas pregadas em diversos sentidos por cima da porta.
Para mim, a mensagem foi clara desde o início. O quer que ali estivesse não era para ser sabido.

O ruído era inconstante, tanto se repetia pela noite adentro parando ao amanhecer, como se dava a notar em determinadas horas durante o dia. Dava a ideia de que alguém trabalhava fervorosamente nalgum estranho projecto, lembro-me de ter pensado isso.
Mas o ponto de todos os acontecimentos é que um dia o ruído parou. Aquele doce som que me acolhia e afastava outros extinguiu-se.
Nunca me tinha dado ao trabalho de reflectir sobre ele, sou uma pessoa prática, não perco tempo a pensar em coisas quem em nada vão alterar a minha vida ou o seguimento das coisas. Mas quando ele parou, o meu corpo ressentiu-se. Talvez fosse uma espécie de droga sonora. Enlouqueci, foi um processo lento.

Desde de uma desconfiança intensa e crescente por tudo o que me rodeava a correr pela porta fora de corpo despido e arranhado pelas minhas próprias mãos que não descansavam sem terem o prazer de arranhar, arrancar, ou perfurar carne, a loucura envolveu-me e deu-me o seu abraço.
Não vou aprofundar esses tempos, são recordações de pouco senso e talvez traumatizantes para alguns.

No ponto máximo da minha loucura, ou daquilo que penso que foi o seu máximo, de corpo completamente deplorável, mente nem vista, naquilo que podia ser o último acto de uma vida e por isso extremamente necessário, corri, rebolei e esfolei-me ainda mais por aquelas escadas abaixo em direcção à sinistra porta.
Sem nunca a tentar abrir, esmurrei-a, dei-lhe cabeçadas, pontapés e joelhadas. Enfim, matava-me desta forma. Daí em frente, só os flashbacks que durante a noite me visitam.
Luz branca intensa, seguida de um acesso de criaturas vindas de pesadelos, pequenas de dedos e unhas compridos e afiados que me perfuraram, orelhas enormes e pontiagudas que agitavam e chicoteavam, caudas semelhantes. Dentes propícios a umas dentadas agonizantes. Aquilo que com toda a razão poderia chamar uma confusão dos diabos. Não sei se tal vinha do inferno, julgo que seria uma boa idealiazação. O meu corpo foi comido e torturado com as maiores dores possíveis na imaginação, no entanto, a minha mente delirava no mais autêntico êxtase.

Sei que me encontraram debaixo dos restos daquele edifício, mas não no andar da cave. Não sei como sobrevivi nem o sabem quem me encontrou. Sei que outro edifício foi construído por cima das fundações daquele, penso que assim tem sido desde à muito e que não sou o primeiro ser a quem isto acontece. Sei que a outro isto vai acontecer, e não vou ser eu que vou impedir que a sua vida fique arruinada, condenada a um asilo e às mais torturosas dores nos pedaços de corpo que lhe restarem.
Não sou egoísta, ainda hoje, o som que me embala é aquele velho ruído e os sonhos prazenteiros, as recordações desses momentos. Prazeres mórbidos. Não me importo que a minha vida tenha acabado assim tão cedo.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Coração


As pétalas de uma rosa caiem. Desfolhada. Murcha.

Murcha para se desfazer no tempo, pó se tornar, para fora voar.
Não chega.

O mergulho na profundidade da escuridão é muito, o seu aprisionamento penoso.
Não é isso que mata, no fim, o pó flutua.

Pena de quê? Do pó que fica jamais voando ou do abismo que o guardará nos confins das memórias?
A memória não é eterna, um dia também pó se tornará.
Dias esses que talvez acabem antes de serem avistados.

Cada pétala é uma lágrima. Uma lágrima, um sentimento. Um sentimento, algo abandonado.
Deixada cair para não mais lembrar.
Lembrança tortuosa... Tortuosa, torturosa. Lembrança que recorda, lembrança que lembra. Lembrança que asfixa.

Pétala que sangra.
Lembrança que asfixa.
Abismo que enlaça.
Pó que sufoca.
É o que guardo.
A rosa é o coração que um dia te oferecerei.