domingo, 21 de junho de 2009

Aborrecimento

A brisa passa-me ao lado. Esvoaça-me um ou outro cabelo, nada mais.
Observo o que se passa no mundo, pessoas, bichos, folhas, ar, terra, água, fogo.

Tudo isto me passa ao lado.

O sol vai-se pondo, devagar até ao horizonte, aí perdurando por momentos para que eu o possa observar e lamentar os laranjas, cor-de-rosas, vermelhos e roxos.
A noite chega com mais uma oferenda, azul escuro e alguns pontos brilhantes a enfeitá-lo.
Observo o que se passa no mundo, pessoas, bichos, folhas, ar, terra, água, fogo.

Tudo isto me passa ao lado.

A noite passa abrindo caminho para o novo sol. Os dias passam, as noites também. O verão, o outono, o inverno, a primavera. Estações rolam umas por cima das outras demonstrando a passagem do velho tempo.
Observo o que se passa no mundo, pessoas, bichos, folhas, ar, terra, água, fogo.

Tudo isto me passa ao lado.

O meu corpo continua aqui sentado, cotovelo pousado no joelho, queixo na mão. A observar.
A brisa passa-me ao lado. Esvoaça-me um ou outro cabelo, nada mais.
Aqui procurei, observei e procurei, vi noites e dias a passarem, estações a mostrar as suas emoções, nada encontrei.
Pessoas brincam, folhas caiem, bichos caçam. A Terra move-se no seu ciclo interminável, ou não.

São os momentos que passam de mão dada ao tempo. São as emoções que flutuam procurando um lar. É o nariz que funga de pouco contentamento. São as costas que se queixam da posição adoptada algures no tempo passado. É o coração que vai bombeando mais devagar sem algo que o impila a mover-se.
Os olhos são poços secos que choram o que não têm.


Levanto-me, caminho pelo há muito observado, pessoas, bichos, folhas, ar, terra, água, fogo.
A brisa passa-me ao lado. Esvoaça-me um ou outro cabelo, nada mais.

Tudo isto me passa ao lado.

Caminho de volta ao mundo, o tempo passou. Sento-me numa mesa algures distante e bebo um café.

Gosto amargo.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Paz


»Um caminho simples, umas pedras cinzentas dispostas ao longo do infindável caminho.
»Céu branco, relva verde à volta, mais nada.
»Não há vento, não há nada. Relaxante. A eterna calma perdura e o vazio mostra-se.

»A andar segue-se pelo trilho cinzento. A paisagem não muda. O nada acarinha a face. Aquela paz que qualquer um já desejou na vida, sufoca.
»A respiração acelera, começa a correr. A paisagem não muda. Nada muda.
»Acelera a corrida, nem um fio de ar atravessa o sentido, os olhos esbugalham com o medo que se lhes atravessa no caminho.

»A Solidão que abraça é esta, esta é a realidade sentida: nada se sente.
»A mente desmancha-se nas três cores que rodeiam. Claustrofobia em espaço aberto.
»O ser tudo faz para sentir algo, qualquer coisa, dor, frio, calor, algo...
»O juízo dentro de si próprio atrofia. Desespero raiado por todo ele, a falta de algo.

»A calma sufoca todas as entranhas, envolve todo o ser, inevitável. Tudo relaxa, da forma mais horrenda, relaxa.
»Calma que flui no sangue, o desejo mais indesejado.
»O ser abranda, a respiração abranda, pouco a pouco pára.
»O último desejo é o sentido, qualquer coisa, dor, frio, calor, algo...
»Agora, o vazio abraça o ser, ele próprio se desvanece na paz do nada.
»Muito leve, quase não se sente um fio da mais calma brisa passa sobre aquele milímetro de pele.
»Agonia, desespero, as lágrimas que não podem correr rebentam do que ainda não desapareceu do ser.
»No último tempo foi-se.
»Agora consome-se, é consumido.

»Desaparece da paradisíaca paz.


»O céu é branco; a relva à volta, verde; as pedras dispostas no infindável caminho, cinzentas.
»Não há vento, não há nada. Relaxante.
»A paisagem não muda, nada muda. Paz.

domingo, 8 de março de 2009

Apego

Era uma luz, mais uma, menos uma. Perguntaram que diferença fazia, não soube responder.
Foi apenas mais uma que apareceu, apareceu e voltou a desaparecer, como tudo.

A diferença.

Eu digo, a diferença foi que reparei nela. Reparei, vi-a. Olhei e senti-a.
Aquela luz foi minha.
Grande, pequena, média, não interessa, foi minha. Isso é todo o necessário para a destacar, é aquilo que não me podem tirar.
É a diferença entre o meu e o teu, a diferença entre ser e não ser.

É o poder daquilo que sentimos demonstrado clara ou distorcidamente, por querer ou não.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Nostalgia

Folha em branco,
Caneta de tinta seca
Pena de ponta partida,
Linhas tortas em campo

Banco sem poeta
Janela sem observador
Baloiço sem criança
Divã sem sonhador

Folhas caídas
No pátio esquecidas.

Camada de pó
Recordação empilhada
Lembrança arrastada
Instrumento sem dó

Sol poente
Aquele, quente
Este, frio
Perdeu o brio

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Perseguição

Pesadelos que assumem formas
Morte anunciada ao destemido,
Pedaço de céu que foi comido
É o risco por aquilo que amas.


»Perseguição desenfreada, à frente as rasgadas e escarpes montanhas cortam o ar como armas de uma teia. Perante reflexos do passado e os sonhos que comportam, o sentido do ser perde-se.
»A perseguição perde rumo enquanto adentra o novo pesadelo.

»Cuidado para não tocar, raspar, arranhar... Agora desviar. Não para esse lado, para o outro. Para cima, não, baixo, lado, aí não, ali, naquele lado, desvia! A montanha vai-se materializando de momentos em momentos cuidando arrancar o coração.

»A presa desaparece de vista, as imagens tomam o seu lugar.
»Quem disse que se estava numa montanha? Disparate. O prado percorre os montes e vales, o verde deslizando sobre ele como um manto de vida. As árvores abanam ao sabor da suave brisa como que saudando o visitante.
»Verde? Não. A cor predominante é aquele castanho venenoso de quem foi tomado pela morte. As árvores não passam de espinhos decrépitos saídos algures da terra. Nem abanam com o sabor da brisa, não há brisa. A morte até o vento levou.

»O relógio anda para trás, dobra-se no tempo. Imagens distorcidas. A realidade altera-se.
»Os sonhos não mais são sonhos, não mais existem. Este é um mundo de pesadelo constante. Os mais horríveis tormentos conhecidos, aqui, são o rouxinol a cantar à alvorada.
»Não se sabe quanto tempo passou, minutos, horas, dias, anos. A morte não matou, ela comeu o ser chupando todas as entranhas.

»Fora

»As montanhas rodeiam novamente, ar! Ás golfadas ele entra, mas já não parece o mesmo ar, nada parece o mesmo. O tempo está parado, nada mexe. O perseguido há muito desapareceu, só os rasgos de pesadelos perduram à volta.
»Outra vez! Os ponteiros mexem-se outra vez, a velocidade retorna na sua igualdade. Já não há o que a suporte. A fraqueza domina, o controlo não existe. Já não há desviar: choca, esbarra, esfola, parte-se, esmaga-se. Sangue fresco é a nova decoração destes espinhos.

»O perseguidor já não existe, cai simplesmente, empalado no pesadelo. O pesadelo decidiu fazer dele sua parte.
»Perseguição vã, o amor escapou-se pelo horror, ou foi consumido pelo mesmo.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Sons do Fundo da Cave

Aquele velho ruído não era nada, nada de anormal.
Mas era o ruído, e velho.

Vi quem se arrepiasse, ficasse com os cabelos em pé, ou pele de galinha.
Vi quem olhasse inquisidoramente à sua volta à procura do autor de um possível ataque.
Vi quem tivesse o olhar esgazeado por todo o aposento à procura do autor de semelhante som.
Nunca senti nada disto, pelo contrário, uma onda de alívio percorria-me. Sentia que a minha presença era acolhida nalgum lar.

Sempre soube que o ruído vinha da cave. Aquilo que ninguém percebia de onde vinha, para mim era claro a sua origem.
Não sei dizer se o ruído era um arfar, uma serra a arrastar-se numa parede, um som de agonia, um impulso de raiva, um pingo a cair ou tudo isto e mais alguma coisa.
Nunca ninguém soube dizer. Na verdade, nunca ninguém conseguiu falar no assunto. Talvez fosse demasiado aterrorizante ou pensassem que estavam a enlouquecer.
Também nunca ninguém sobreviveu muito tempo para contar história de semelhante som.

Nunca investiguei a fonte do som, sabia apenas o local. Penso que se o desconhecido é desconhecido, é porque o objectivo não é ser conhecido. Nunca procurei meter-me onde não me chamaram. Se querem que eu saiba algo, que se apresentem à minha frente.
Mas talvez o devesse ter feito.
De qualquer forma, é passado. E não vale a pena lamentar o passado quando nada o vai alterar.

A cave era um aposento ao qual se acedia através de um alçapão encontrado debaixo do tapete de entrada, descia-se por umas escadas e deparávamos-nos com uma porta, era uma porta antiga, de uma madeira sólida que com os anos não tinha deteriorizado.
Estava trancada e era firme. Apesar de isto ser o suficiente para não deixar ninguém entrar, esta, ainda se encontrava com diversas tábuas pregadas em diversos sentidos por cima da porta.
Para mim, a mensagem foi clara desde o início. O quer que ali estivesse não era para ser sabido.

O ruído era inconstante, tanto se repetia pela noite adentro parando ao amanhecer, como se dava a notar em determinadas horas durante o dia. Dava a ideia de que alguém trabalhava fervorosamente nalgum estranho projecto, lembro-me de ter pensado isso.
Mas o ponto de todos os acontecimentos é que um dia o ruído parou. Aquele doce som que me acolhia e afastava outros extinguiu-se.
Nunca me tinha dado ao trabalho de reflectir sobre ele, sou uma pessoa prática, não perco tempo a pensar em coisas quem em nada vão alterar a minha vida ou o seguimento das coisas. Mas quando ele parou, o meu corpo ressentiu-se. Talvez fosse uma espécie de droga sonora. Enlouqueci, foi um processo lento.

Desde de uma desconfiança intensa e crescente por tudo o que me rodeava a correr pela porta fora de corpo despido e arranhado pelas minhas próprias mãos que não descansavam sem terem o prazer de arranhar, arrancar, ou perfurar carne, a loucura envolveu-me e deu-me o seu abraço.
Não vou aprofundar esses tempos, são recordações de pouco senso e talvez traumatizantes para alguns.

No ponto máximo da minha loucura, ou daquilo que penso que foi o seu máximo, de corpo completamente deplorável, mente nem vista, naquilo que podia ser o último acto de uma vida e por isso extremamente necessário, corri, rebolei e esfolei-me ainda mais por aquelas escadas abaixo em direcção à sinistra porta.
Sem nunca a tentar abrir, esmurrei-a, dei-lhe cabeçadas, pontapés e joelhadas. Enfim, matava-me desta forma. Daí em frente, só os flashbacks que durante a noite me visitam.
Luz branca intensa, seguida de um acesso de criaturas vindas de pesadelos, pequenas de dedos e unhas compridos e afiados que me perfuraram, orelhas enormes e pontiagudas que agitavam e chicoteavam, caudas semelhantes. Dentes propícios a umas dentadas agonizantes. Aquilo que com toda a razão poderia chamar uma confusão dos diabos. Não sei se tal vinha do inferno, julgo que seria uma boa idealiazação. O meu corpo foi comido e torturado com as maiores dores possíveis na imaginação, no entanto, a minha mente delirava no mais autêntico êxtase.

Sei que me encontraram debaixo dos restos daquele edifício, mas não no andar da cave. Não sei como sobrevivi nem o sabem quem me encontrou. Sei que outro edifício foi construído por cima das fundações daquele, penso que assim tem sido desde à muito e que não sou o primeiro ser a quem isto acontece. Sei que a outro isto vai acontecer, e não vou ser eu que vou impedir que a sua vida fique arruinada, condenada a um asilo e às mais torturosas dores nos pedaços de corpo que lhe restarem.
Não sou egoísta, ainda hoje, o som que me embala é aquele velho ruído e os sonhos prazenteiros, as recordações desses momentos. Prazeres mórbidos. Não me importo que a minha vida tenha acabado assim tão cedo.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Coração


As pétalas de uma rosa caiem. Desfolhada. Murcha.

Murcha para se desfazer no tempo, pó se tornar, para fora voar.
Não chega.

O mergulho na profundidade da escuridão é muito, o seu aprisionamento penoso.
Não é isso que mata, no fim, o pó flutua.

Pena de quê? Do pó que fica jamais voando ou do abismo que o guardará nos confins das memórias?
A memória não é eterna, um dia também pó se tornará.
Dias esses que talvez acabem antes de serem avistados.

Cada pétala é uma lágrima. Uma lágrima, um sentimento. Um sentimento, algo abandonado.
Deixada cair para não mais lembrar.
Lembrança tortuosa... Tortuosa, torturosa. Lembrança que recorda, lembrança que lembra. Lembrança que asfixa.

Pétala que sangra.
Lembrança que asfixa.
Abismo que enlaça.
Pó que sufoca.
É o que guardo.
A rosa é o coração que um dia te oferecerei.