sábado, 17 de janeiro de 2009

Sons do Fundo da Cave

Aquele velho ruído não era nada, nada de anormal.
Mas era o ruído, e velho.

Vi quem se arrepiasse, ficasse com os cabelos em pé, ou pele de galinha.
Vi quem olhasse inquisidoramente à sua volta à procura do autor de um possível ataque.
Vi quem tivesse o olhar esgazeado por todo o aposento à procura do autor de semelhante som.
Nunca senti nada disto, pelo contrário, uma onda de alívio percorria-me. Sentia que a minha presença era acolhida nalgum lar.

Sempre soube que o ruído vinha da cave. Aquilo que ninguém percebia de onde vinha, para mim era claro a sua origem.
Não sei dizer se o ruído era um arfar, uma serra a arrastar-se numa parede, um som de agonia, um impulso de raiva, um pingo a cair ou tudo isto e mais alguma coisa.
Nunca ninguém soube dizer. Na verdade, nunca ninguém conseguiu falar no assunto. Talvez fosse demasiado aterrorizante ou pensassem que estavam a enlouquecer.
Também nunca ninguém sobreviveu muito tempo para contar história de semelhante som.

Nunca investiguei a fonte do som, sabia apenas o local. Penso que se o desconhecido é desconhecido, é porque o objectivo não é ser conhecido. Nunca procurei meter-me onde não me chamaram. Se querem que eu saiba algo, que se apresentem à minha frente.
Mas talvez o devesse ter feito.
De qualquer forma, é passado. E não vale a pena lamentar o passado quando nada o vai alterar.

A cave era um aposento ao qual se acedia através de um alçapão encontrado debaixo do tapete de entrada, descia-se por umas escadas e deparávamos-nos com uma porta, era uma porta antiga, de uma madeira sólida que com os anos não tinha deteriorizado.
Estava trancada e era firme. Apesar de isto ser o suficiente para não deixar ninguém entrar, esta, ainda se encontrava com diversas tábuas pregadas em diversos sentidos por cima da porta.
Para mim, a mensagem foi clara desde o início. O quer que ali estivesse não era para ser sabido.

O ruído era inconstante, tanto se repetia pela noite adentro parando ao amanhecer, como se dava a notar em determinadas horas durante o dia. Dava a ideia de que alguém trabalhava fervorosamente nalgum estranho projecto, lembro-me de ter pensado isso.
Mas o ponto de todos os acontecimentos é que um dia o ruído parou. Aquele doce som que me acolhia e afastava outros extinguiu-se.
Nunca me tinha dado ao trabalho de reflectir sobre ele, sou uma pessoa prática, não perco tempo a pensar em coisas quem em nada vão alterar a minha vida ou o seguimento das coisas. Mas quando ele parou, o meu corpo ressentiu-se. Talvez fosse uma espécie de droga sonora. Enlouqueci, foi um processo lento.

Desde de uma desconfiança intensa e crescente por tudo o que me rodeava a correr pela porta fora de corpo despido e arranhado pelas minhas próprias mãos que não descansavam sem terem o prazer de arranhar, arrancar, ou perfurar carne, a loucura envolveu-me e deu-me o seu abraço.
Não vou aprofundar esses tempos, são recordações de pouco senso e talvez traumatizantes para alguns.

No ponto máximo da minha loucura, ou daquilo que penso que foi o seu máximo, de corpo completamente deplorável, mente nem vista, naquilo que podia ser o último acto de uma vida e por isso extremamente necessário, corri, rebolei e esfolei-me ainda mais por aquelas escadas abaixo em direcção à sinistra porta.
Sem nunca a tentar abrir, esmurrei-a, dei-lhe cabeçadas, pontapés e joelhadas. Enfim, matava-me desta forma. Daí em frente, só os flashbacks que durante a noite me visitam.
Luz branca intensa, seguida de um acesso de criaturas vindas de pesadelos, pequenas de dedos e unhas compridos e afiados que me perfuraram, orelhas enormes e pontiagudas que agitavam e chicoteavam, caudas semelhantes. Dentes propícios a umas dentadas agonizantes. Aquilo que com toda a razão poderia chamar uma confusão dos diabos. Não sei se tal vinha do inferno, julgo que seria uma boa idealiazação. O meu corpo foi comido e torturado com as maiores dores possíveis na imaginação, no entanto, a minha mente delirava no mais autêntico êxtase.

Sei que me encontraram debaixo dos restos daquele edifício, mas não no andar da cave. Não sei como sobrevivi nem o sabem quem me encontrou. Sei que outro edifício foi construído por cima das fundações daquele, penso que assim tem sido desde à muito e que não sou o primeiro ser a quem isto acontece. Sei que a outro isto vai acontecer, e não vou ser eu que vou impedir que a sua vida fique arruinada, condenada a um asilo e às mais torturosas dores nos pedaços de corpo que lhe restarem.
Não sou egoísta, ainda hoje, o som que me embala é aquele velho ruído e os sonhos prazenteiros, as recordações desses momentos. Prazeres mórbidos. Não me importo que a minha vida tenha acabado assim tão cedo.

1 comentário:

  1. Afinal, todos somos loucos...

    Gostei... não sabia que tinhas um blog, mas ganhaste um fã... xD

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